“Porque não dormia? Ora, dormir não era o mais importante. O mais importante era parar o pensamento; estancá-lo. Sim, se o pensamento parasse, então ter-se-ia verdadeiramente descanso. Mas o pensamento não era cavalo que se prendesse à argola. Qualquer homem manda no seu criado, mas não manda no seu pensamento. É uma fatalidade, uma destas coisas absurdas, incríveis, que sucedem ao bicho homem: a linfa a rebelar-se contra a torrente, a asa do milhafre contra o próprio milhafre, a luz contra o sol. Para o homem domar o pensamento só havia um processo: escangalhar a corda da vida como se escangalha a corda dum relógio. Mas dizem que a vida a Deus pertence. Para que é que ele a quer? Que lhe vale mais uma, menos uma, se tem tantas e todos os dias as malbarata ceifando-as antes da hora? Mas, em suma, se a vida é como a parede na tapada dum rei que não há o direito de deitar abaixo, ao menos quem pudera subjugar o lobo-cerval, que mora lá dentro, de modo a não causar dano à comodidade da criatura?

Não houvesse dúvida que o bicho roía a bom roer na raiz da sua gente. A tia Soledade morrera doida; sua mãe liru, apancada também ela. Fechou outra vez os olhos, reflectindo no roubo que sofrera e votando o gatuno a todas as pragas deste mundo e do outro. Ouviu a coruja lá bem longe, para o fundo do povo. Andaria a fairar a casa em que estava para entrar Nosso Pai. Por enquanto não lhe tocava pela porta.

— Ó Bárbara, tu tampaste a caçoila? — mugiu a voz choca do Duarte.
— Tampei, homem, tampei. Acordaste relampado com algum pesadelo…?
— Podia saltar para lá uma centelha e pegar o fogo…
— Até foste tu que a tapaste.

Sentiu-o dar volta na enxerga com o escarcéu dum porco no palhuço, para romper logo a ressonar. Ao menos aquele não tinha argueiros a remorder-lhe na consciência. O galo cantou e recantou. Possuiu-a um acesso de tosse, aquela tosse que parece vinha de trás das costas e às vezes a lanceava, e ficou mais esperta. Pôs-se a rezar o terço pelo eterno descanso da alma de sua mãe e tia, depois de pegar no rosário tacteando. Rezou, ensopou-se de padre-nossos, mas o malvado do pensamento prosseguiu na vadiagem. Que valia afinal a porca da carne da gente, em pouco tempo feita esterco e pó? Que se ganhava em a defender da bocada deste e daquele? Não, não estava persuadida que Deus Nosso Senhor tivesse algum interesse em que ficasse para ali uma donzela relha e revelha só para pasto dos vermes…

A noite continuava a passar sorrateira como uma loba por uma estrada. O luar, entrando pelo olheiro, tecia ali uma bruma leitosa, mais branda que a espuma do rio. Era um nimbo e tinha parecenças com o manto nevado de Nossa Senhora da Boa Morte. Nada lhe faltava, nem rendas, nem o vapor diáfano da cambraia. Bendita ela fosse, se ainda aquela noite lhe servisse de mortalha. Mas não, não era mortalha, nem coisa que se aproximasse. Na lareira, a brasa viva entre tições apagados lembrava-lhe onde estava. O Duarte ressonava e era outro aviso de presença. Resumia o boi acabado, manso, ruminador e incansável à lida. Felizardo, não tinha os seus desesperos. Eram diferentes. Não o são os dedos da mão?”

Volfrâmio – Capítulo VI. Aquilino Ribeiro. Bertrand Editora. 2015.

“The Invisible Lover” by Ara Dinkjian, performed by Ara Dinkjian on the üd, Tamer Pinarbasi on the qānūn, and Glen Velez on the riq.

 

Hatra”, written and performed by Glen Velez on the the tar.

 

“Silver Lining”, written and performed by Glen Velez on the the Bodhran.

 

“Gurbet O Kadar” by Yildirim Gürses, performed by Ara Dinkjian on the üd, Tamer Pinarbasi on the qānūn, and Glen Velez on the bodhrán.

 

“Rain” written and performed by Glen Velez on the the riq.

(In my sleep I dreamed this poem)

Someone I loved once gave me
a box full of darkness.

It took me years to understand
that this, too, was a gift.

The Uses of Sorrow. Thirst. Mary Oliver. Beacon Press. 2007.